30 out, 2020 | Antonio Martins | Sem comentários
A Ressurreição de Zé Bodó
O período reservado ao corte da cana, colheita da mandioca e beneficiamento das matérias primas trouxe a família de Zé Bodó à Serra do Estêvão¹, para trabalhar no engenho de meu pai. Os genitores do rapaz trabalharam, ali, até a aposentadoria. A convite dos filhos, foram residir na capital, deixando no lugar o filho caçula.
Zé Bodó não tinha afinidade com o trabalho, vivia explorando os pais, dando desculpas, pregando peças e tentando se dar bem em tudo. Quando a empreitada era desfavorável, ele revertia a situação. Durante o trabalho era flagrado dormindo no aceiro do roçado; quando pegava em dinheiro, caia na bebedeira; arranjava doenças para ser pajeado até a cura que, nunca chegava; pousava de bom partido, era um bon-vivant², um malandro!
Sem os pais para explorar, sem crédito e confiança, Zé Bodó precisou se reinventar. Certo dia um peixeiro³ de Choró4 travou um diálogo com ele, dando-lhe conselhos. A princípio a preguiça lhe desmotivou, mas, não restando outra alternativa, aceitou! Levou umas frutas da serra e foi com o recém-amigo vendê-las no Sertão de Choró. E logo empregou o dinheiro das vendas na compra de batatas-doces e peixes, para vendê-los na serra. Era a dinâmica empreendedora.
Ocorre, que Zé Bodó precisava de um financiamento inicial. E o peixeiro de boa-fé socorreu o malandro, na condição de receber o pecúlio no apurado das vendas. E assim se fez, os dois desceram a serra com as cargas de frutas. Chegando ao destino, o peixeiro apresentou o vendedor aos membros da comunidade e por fim lhe deu até abrigo.
O negócio rendeu, em duas horas de trabalho Zé Bodó vendeu todas as frutas e fazia planos para a próxima empreitada. Ao final da tarde, o peixeiro e o amigo já se preparavam para retornar à serra. Mas de repente Zé Bodó caiu morto no meio do terreiro da frente. Foi uma grande aflição e a notícia se espalhou. O peixeiro organizou o velório e a comunidade se mobilizou para o sepultamento. Cortaram uma haste fornida de madeira, que os homens apoiaram nos ombros, para levar o cadáver esticado na rede. E seguiram com o cortejo. Depois de vencer a subida íngreme da serra, eles resolveram descansar um pouco. Então colocaram o defunto debaixo de um cajueiro, enquanto passava a fadiga. A crise demorada de catalepsia passara, de repente Zé Bodó se espreguiçou, botou a cabeça para fora da rede e disse:
– O que é que eu tô fazendo aqui?
Foi gente correndo para todo lado!
Zé Bodó estava apertado e correu para detrás de uma moita! Enquanto fazia as necessidades fisiológicas, o dinheiro das vendas, que estava escondido no cós da calça, caiu em seus pés. O malandro recolheu o quinhão, dobrou a rede, pôs debaixo do braço e seguiu solitário até o povoado. Ali, o matreiro pegou o primeiro pau-de-arara para Quixadá e na cidade, comprou passagem e tomou o trem da meia noite para Fortaleza. Mudou-se. Hoje reside na capital.
¹ Serra do Estêvão – Serra do Estêvão – Inicialmente, o povoado recebeu a denominação de Serra do Estêvão, alusão a um possível primeiro morador do lugar; por influência dos Monges Beneditinos e das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição, passou a se chamar Serra de Santo Estêvão e; atualmente, em homenagem ao monge fundador do Mosteiro de Santa Cruz e do Colégio Secundarista São José, passou a se chamar distrito de Dom Maurício, Quixadá – Ceará. Conjunto de montanhas situadas a 650 metros de altitude, acima do nível do mar.
² Bon-vivant – 1. Homem que sabe aproveitar a vida; animado; feliz. 2. Malandro; boa vida; o que pela lábia, busca os prazeres da vida.
³ Peixeiro – Homem simples do sertão choroense, em parte agricultor, que, durantes as estiagens, a falta de renda e a ausência de políticas públicas, pescavam e levavam os peixes para serem vendidos na Serra do Estêvão e região.
4 Choró – Em 1933 se tornou distrito de Quixadá – Ceará. Atualmente, cidade de Choró – Ceará, emancipada em 1992. Apelidado: Choró Limão.
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