28 out, 2020 | Antonio Martins | Sem comentários

Mãe Luzia: Medianeira da Vida

Meu dia estava só começando! Eu nutria os olhos com a tela paisagística do cume da Serra do Urucum, base do Santuário Mariano de Quixadá. Em meio à contemplação, ouvi “ Filho, você lembra o que fizemos em seu último aniversário? ” era um pai zeloso perguntando, enquanto enquadrava a câmera fotográfica.

Confesso que a atitude paterna, mexeu comigo! Hoje, também, era o dia de meu aniversário. Apossei-me da pergunta alheia e parti; tornei-me viajor! Embarquei nas asas do tempo, buscando o relicário das lembranças de outrora. Coloquei-me diante de meu próprio memorial, um diário de vida. Finalmente eu estava completando cinquenta anos de idade. Ufa! Meio século. Quem diria, hein!?

Tirei proveito da odisseia alada fazendo escala e conexões no tempo. Quanta coisa! De súbito, a saudade descortinou um grande achado; verdadeiras histórias empoeiradas que a sociedade esquecera, largada nas prateleiras da memória. Afinal, era história de negro! A quem interessaria? Mas é esta história, que eu quero rememorar, nela está a outra metade de mim.

Transportei-me para os alpendres da casa grande¹, meu lar na Serra do Estêvão. Dali, acompanhava a criança que fui, circulando pelos terreiros da casa de farinha e do engenho. Meu pai e seus colaboradores cuidavam da produção. Eram homens e mulheres empregando a força humana no meio produtivo. A economia do país se movimentava; materializava-se, ali, a luta pela sobrevivência.

Senti uma titilagem² nos cabelos, era uma visita benfazeja, a companhia que toda parturiente almejava ter ao lado. Era a Mãe Luzia!

Maria Luzia Ribeiro, nasceu no Sítio Veiga, em Dom Maurício, Quixadá – Ceará, no dia 27 de setembro de 1910, filha de Francisco Gonçalves e Luzia Ribeiro. Sua família materna rompera as fronteiras do Rio Grande do Norte, com destino ao Ceará, refugiando-se na Serra do Estêvão, escolhendo o Sítio Veiga como paragem. Ali, fundaram o quilombo como forma de resistência e luta pela sobrevivência. Neste cenário a menina nasceu, perdeu sua mãe aos doze anos de idade; por ser a filha mais velha, passou a cuidar dos irmãos como se fossem seus filhos. Casou com Raimundo Eugênio de Sousa, adotando o nome de nome de Maria Luzia de Sousa, de cuja união nasceram dez filhos.

Cristã, com liderança nata, conhecida como Maria Luzia, Mãe Luzia, Bá, Luzia do Raimund’Marta, manteve viva as tradições, organizando novenas, procissões e louvores. Como matriarca, juntamente com sua irmã biológica Nêna³, nunca se descuidou das missas dominicais e celebrações festivas, próprias do calendário sacro, acontecidas no Mosteiro da Santa Cruz e na Capela de Senhora Sant’Ana, no povoado.

Devota de santa Luzia e outras divindades, manteve viva a tradição de enfeitar os oratórios, altares e andores com papéis coloridos, fitas, laços, palhas de coco catolé e outros adereços; as procissões se davam em meio a cânticos, orações e rajadas de fogos de artifício; a tradicional Dança de São Gonçalo4, herdada de seus ancestrais, em cujo rito desempenhava o papel de guia5,, orientando as dançadeiras6, juntamente a contraguia, mestre e contramestre7; sepultamento de crianças, cujos caixões eram ornados com papéis coloridos, e o cortejo fúnebre em forma de procissão, com cânticos próprios; velório e sentinela de adulto, em que se entoavam as incelenças8.

Como mãe, esposa e mulher, exerceu a agricultura, em terras da família e atuou, também como meeira e diarista, em outras propriedades. Trabalhou em moagens de cana; nas raspagens de mandioca, durante as farinhadas e; na lavagem de roupas. Confeccionava parte dos utensílios domésticos empregando a técnica de manipular o barro de louça, herdada dos troncos velhos9.

Por ser analfabeta, negra e pobre, Mãe Luzia não deixou de ser grande. Suas amizades e relações sociais transitava por todas as classes. Pelos conhecimentos adquiridos, tornou-se prática em medicina, manipulando ervas, preparando infusões, fazendo bandagens e aplicando unguentos. Foi a parteira mais requisitada do lugar e entorno, razão pela qual, era respeitada e chamada de Mãe Luzia. Tornou-se mãe de umbigo10 de quase todos os habitantes do lugar e mãe de leite11 de parte deles. O amor pelos filhos perfilhados transcendia credo, cor, raça e posição social. A matriarca benfazeja, não calculava a tamanha importância de suas obras. Afinal, ela realizava tudo, simplesmente, pelo amor de bem servir! Onde chegava, era reverenciada por crianças, jovens e adultos; todos em busca de sua bênção.

Durante seu mister, (iniciado somente após o casamento e que durou por volta de 45 anos)¹² não houve nenhum registro de fatalidade com parturientes e outros assistidos. Sempre que finalizava uma tarefa, seguia um ritual. Sentava-se e tomava uma boa dose de genebra13 ou Vinho, pitando o cacimbo.

Ao longo da infância, testemunhei, com certo asco, situações em que o fenótipo da obreira, rendeu-lhe depreciações social. Mas, como ninguém é santo a vida inteira, a resiliente senhora, vez por outra, conseguia demonstrar que, naquele envolto corpóreo, havia um ser humano capaz de se indignar com as injustiças do mundo, reagindo diante delas. E eu não tenho, aqui, a intenção de ser juiz da pecha social e tão pouco da vítima. Deixo meu relato, para que a sociedade aprenda com seus erros, pois o papel de juiz, nem o filho de Deus tomou para si. Que Deus e a sociedade me perdoem pelo desabafo, mas confesso que, certa vez, eu testemunhei e vibrei com a capacidade humana, que teve aquela virtuosa senhora, de se indignar diante das injustiças sofridas e reagir. Algumas crianças chegavam a receber corretivos dos pais. Mas o que fazer quando o problema, de forma velada, está nos genitores, nas instituições, nos adultos e se perpetuam através da reprodução social, procrastinando a real igualdade entre os homens?

O labor diário não atrapalhava sua missão cristã. Ela reservava os finais de tardes para o tratamento espiritual de seus pacientes, através de orações. Ela rezava para banzo14, quebranto, vento caído e mau-olhado.

Gozou da amizade e conviveu com outra mulher, importante no registro histórico local, a Pilíça15. Uma mulher negra, que por sua importância, conhecimento, força e coragem, tornou-se mito, uma verdadeira lenda serrana e das cercanias.

Mãe Luzia é mais uma filha da pátria com legado proficiente de trabalho e luta pacífica, que morreu, sem, contudo, a mãe gentil reconhecer e registrar seus feitos. Em verdade eu vos digo, ela foi vitimada e sufocada pela amnesia da burocracia estatal, que só uma década após sua morte, tornou oficial o reconhecimento do Sítio Veiga e cercanias como comunidade quilombola. A obreira, que em vida, enfrentou preconceito escancarado e velado da sociedade, por seu fenótipo, faleceu aos 85 anos de idade, no dia 20 de maio de 1996, deixando a nação serrana órfã. O seu corpo está sepultado no Cemitério Senhora Sant’Ana16, em Dom Maurício.


Nota de rodapé

¹ Casa grande – Casa de alpendres localizada na antiga Serra do Estêvão, atual distrito de Dom Maurício, em Quixadá – Ceará, erguida por meus ancestrais, era a residência de minha família; ali se concentrava a administração dos negócios de meu pai no tocante ao sítio, plantio, colheita, criação de animais, tendo no entorno a casa de farinha, o engenho e o Cartório de Registro Civil, considerando que meu genitor era o titular do 1º Ofício. Foi neste cenário, que se deu a minha infância.
² Titilagem – O mesmo que titilar. Afagar os cabelos com as pontas dos dedos. Hábito carinhoso que tinha Mãe Luzia, ao afagar as crianças.

³ Nêna – Francisca Ribeiro da Silva, de cognome Nêna, nascida em 10/04/1917. Ela e o único irmão caçula Pedro Ribeiro da Silva, nascido em 1922, foram Criados pela irmã Maria Luzia. Nêna não se casou e viveu em sua casa, vizinha à irmã, compartilhando o que era comum. Faleceu em 20/041987 e foi sepultada em Dom Maurício.
4 Dança de São Gonçalo – O santo queria salvar almas, então, resolveu buscar as mulheres pecadoras para dançarem aos sábados, logo, durante as noites estavam cansadas e não pecavam; fazia o mesmo no dia seguinte até a conversão delas. O rito chegou ao Brasil e os negros incorporaram às suas tradições. A celebração em forma de dança diurna, conforme a tradição, foi trazida para o Sítio Veiga pelos fundadores do quilombo. Constitui-se de doze jornadas para o santo, uma para as dançadeiras e tantas mais, conforme os promesseiros. (Entendendo-se por promesseiros os que fazem promessas).
5 Guia – Personagem feminina que conduz as dançadeiras, no tocante ao ritmo, movimentos, cânticos, dança e reverência ao santo, entronizado no altar. Faz parelha com a contraguia, que tem a mesma função da guia. As vestes são brancas, entretanto, uma fila usa fita ou cordão azul e a outra na cor rosa, para diferenciar os integrantes de cada lado.
6 Dançadeiras – O mesmo que dançarina; a que dança bem. Os ancestrais chamavam dançadeira, então, por resistência e desconhecimento da norma culta da língua, a cultura local convencionou e passou a chamar de dançadeira.
7 Mestre e Contramestre – Personagens masculinos vestindo branco: O mestre com tambor e o contramestre com violão; eles marcam o ritmo. Com a guia, contraguia e dançadeiras executam a música, a dança e as reverências ao santo.
8 Incelenças – o mesmo que Incelência, excelência. Cantiga de vigília e velório, entoada em uníssono, sem acompanhamento instrumental. Os cristãos antigos faziam vigília ao moribundo, velavam e se estendia por todo o cortejo fúnebre.

9 Troncos velhos – Origem da família; raça; ancestralidade; os mais antigos que dão origem a uma família.
10 Mãe de umbigo – A Parteira que realizou o parto e cortou o cordão umbilical da criança, trazendo-a da vida intrauterina para a exterior.
11 Mãe de leite – Ama de leite. Mulher que amamenta a criança alheia, quando a mãe natural não pode.
12 Iniciado somente após o casamento e que durou por volta de 45 anos – Em vida, Mãe Luzia relatou, como se tornou
parteira e o zelo pelo ofício: O mister seguia um ritual cercado de preceitos éticos e morais: 1. A mulher deveria ser casada e já ter parido, para conhecer as intimidades, sem precisar falar das iscandiliças12.1 e do pecado. 2. A aprendizagem se dava na prática; a aprendiz iniciava como curiosa, após anos, assumia o posto reservado exclusivamente às senhoras casadas que tivessem parido. 3. As parteiras só discutiam o assunto com as senhoras mais velhas. 4. Os homens deveriam manter reserva e distância. 5. As crianças deveriam ser retiradas de casa, para não atrapalhar. 6. Aprendi tudo com os mais antigos e nunca perdi uma só vida. Relatos de Mãe Luzia, verbalmente confiados ao autor. Mãe Luzia só deixou o ofício, quando a visão não lhe permitiu mais realizar partos.
12.¹ Iscandiliça – Coisa Obscena; imoralidade.
13 Genebra – Aguardente de cereais com infusão de bagas de zimbro destiladas ou maceradas. Utilizada no cotidiano, em festejos e como medicamento; administrada como elixir.

14 Banzo – Nostalgia mortal que afetava os negros trazido para o Brasil, na condição de escravos. Dor mortal de saudade; tristeza profunda. Modernamente denominada de dor da alma; depressão.
15 Piliça – Maria Simplício da Silva, negra longeva que viveu mais de cem anos; sofrida e estigmatizada pelo fenótipo. Respeitou as leis e a todos; de fé cristã inabalável, sentimento de doação e caridade. Manteve-se fiel às tradições e à cultura dos ancestrais, grande conhecedora das ervas, plantas e raízes. De força e coragem incomparáveis, tornou-se verdadeira lenda local ainda em vida e no pós-morte.
16 Senhora Sant’Ana – Ana e Joaquim foram os pais de Maria, casada com José, o carpinteiro. Maria deu à luz a Jesus Cristo, portanto, Ana era a avó materna do filho de Deus. Relatos afirma que Ana era descendente do Rei Davi, do qual deveria nascer o Redentor. Em outros relatos, é dito que Joaquim era que pertencia à família real de Davi. Após a canonização Ana passou a se chamar Santa Ana. Então, pela fusão linguística tornou-se Sant’Ana. Os mais antigos, por devoção e respeito, empregavam o pronome de tratamento antecedendo o nome que passou a ser conhecida como Senhora Santa Ana ou Senhora Sant’Ana e, ainda, Sant’Ana. É padroeira do distrito de Dom Maurício, em Quixadá – Ceará, onde há um templo erguido em seu louvor. Também, dá nome ao Cemitério Público local.

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