28 out, 2020 | Antonio Martins | Um comentário

Em Nome do Amor

Quando o celebrante proferiu a bênção final, a assembleia passou a se confraternizar. O local e a ocasião eram perfeitos para o reencontro de familiares e amigos. Afinal, era 22 de dezembro de 2019, acontecera a celebração da missa de reinauguração da Capela de Sant’Ana, em Dom Maurício.

Paulatinamente, o templo foi se esvaziando, sendo eu um dos últimos a deixá-lo. Então, aproveitei a generosidade do clima, para circular pelo patamar da igreja, em meio a uma retrospectiva, de cuja cena Luzia fora a protagonista.

Antônia Eugênia de Oliveira nasceu no dia 25 de março de 1941, no Sítio Veiga, na antiga Serra do Estêvão, atual distrito de Dom Maurício, em Quixadá – Ceará. Filha de Raimundo Eugênio de Sousa e Maria Luzia de Sousa, em cuja árvore genealógica de sua genitora tinha origem quilombola.

Sua família era devota de Santa Luzia, por essa razão a avó materna e a mãe, chamavam-se Luzia. Ela também deveria receber, na pia batismal, o mesmo nome. Mas, o fato de nascer laçada¹, modificou tudo. A menina recebeu o nome de Antônia, conforme mandava a tradição. Mas, a família continuou a chamá-la Luzia.

Desde a infância, exerceu a agricultura com os genitores. Os pais, apesar de analfabetos, ensinaram-lhe o catecismo, que posteriormente, foi aprofundado pelas Irmãs da Congregação Missionária da Imaculada Conceição, no Mosteiro da Santa Cruz. A Menina que era analfabeta, sem o domínio letrado da própria língua, aprendeu, através da oralidade os cânticos, ladainhas, orações, fórmulas e responsórios do Missal Romano, em latim.

Casou-se com José Henrique de Oliveira, o Zé Henrique da Chiquinha Ferreira, de cuja união nasceram quatro filhos, sendo três homens e uma mulher; dentre a prole do sexo masculino, um tinha paralisia cerebral, fato que exigia da mãe, cuidados e atenção redobrados.

Luzia enviuvou cedo, com 32 anos de idade. Seu esposo faleceu, acometido de mal súbito, no dia 26 de dezembro de 1973. Ela viveu o luto perpétuo, sem contrair outro matrimônio. Com os filhos pequenos e sem políticas assistenciais para as famílias do campo, a luta pela sobrevivência se tornou um desafio diário.

Muitos aconselharam-na a entregar os filhos para adoção. Mas o instinto materno e de luta não permitiu a destituição familiar. Ela, também, não se deixou seduzir pelo aliciamento de pessoas, querendo levar sua filha, para trabalhar em casas de família e outros abusos dissimulados, capazes de destroçar vidas.

A luta pela sobrevivência era uma constante, antes do sol romper a barra do nascente, a matriarca já tinha encangalhado o jumento e acomodado a criançada no meio da carga. Chegara a hora de tomar o caminho da roça. No local de trabalho, erguera uma barraca no aceiro do roçado. Ali, as crianças se abrigavam, brincavam, comiam e descansavam. À proporção que os filhos cresciam, passavam a ajudá-la; a filha mulher, ainda criança, cuidava da casa e dos irmãos inclusive do que era especial.

Foi aluna do MOBRAL². Apesar de trabalhar durante o dia e assistir às aulas noturnas, não faltava a um só encontro. Era emocionante ver seu sorriso laureado, expondo o certificado de alfabetizada. E ela, realmente, fora alfabetizada! Ao final da década de 1980, tornei-me diretor e professor de seus filhos, na Escola de 1.º Grau Flávio Portela Marcílio, quando ela resolveu se matricular, para cursar a Educação de Jovens e Adultos; foi a forma encontrada por ela, para incentivar os filhos. Nunca faltou a um só dia de aula e se destacou nas apresentações orais dos trabalhos.

Com os filhos adultos, certamente, Luzia viveria dias melhores. Ocorre que ela foi surpreendida pela dor da perda. Morreram, sequencialmente, todos os varões, de morte natural. Restava-lhe a única filha mulher lutando ao seu lado. Maria das Dores Eugênio de Oliveira trabalhou, estudou, tornou-se professora da rede pública municipal de Quixadá, concluiu o Curso Normal e ingressou na universidade, obtendo formação superior para orgulho da mãe!

Os relatos até então, apresentam uma Luzia mulher, negra, pobre, analfabeta e remanescente de quilombo, que, aparentemente, nascera predestinada à via-crúcis. De fato ela enfrentou, sim! A história não pode negar esta verdade. A posteridade, precisa conhecer o legado desta guerreira serrana.

Quem conheceu a Luzia da Mãe Luzia, do Raimund’Marta, do Zé Henrique, a Luzia Bá e tantos outros cognomes, sabe que ela, com seu sorriso, nunca deixou de sonhar e nem tão pouco de lutar. O bom humor era sua marca e estava presente em tudo que fazia. Vivia com otimismo e altruísmo, apesar de enfrentar preconceito social escancarado e velado, por seu fenótipo, e ainda, por ter os pés em valgo e apresentar gagueira mediana. Ela costumava sorrir, até quando se atrapalhava em situações corriqueiras.

Quando trilhava pelos caminhos e veredas bucólicos, os transeuntes acreditavam, que por ali passara um adjunto de pessoas, em função da conversação e da cantoria; em verdade, quando se aproximavam, descobriam que se tratava da Luzia. Sua presença em qualquer ambiente era efusiva. Não se descuidava da assistência aos velhos e enfermos. Sua predileção pelas crianças, jovens e anciãos era notória. Como exímia contadora de causos, costumava formar rodas de conversas, danças e dramatizações.

Manteve-se fiel à religião e aos ensinos familiar. Não faltava às missas dominicais e às celebrações festivas. Participava do coral, grupo de orações, ritos sacros e sociais, no Mosteiro de Santa Cruz e na Capela de Senhora Sant’Ana³, padroeira do distrito. Aos sábados, dedicava-se à limpeza do patamar e do pátio da Capela do povoado e do Mosteiro. Era a dádiva, por graças alcançadas, inclusive a cura de um câncer.

Integrou a confraria organizadora da tradicional Dança de São Gonçalo4, no Sítio Veiga, inclusive como dançadeira5. Dessa forma, mantinha-se viva a tradição, o credo e o legado dos ancestrais.

Com as pernas acometidas por uma erupção cutânea grave, fez uma promessa com São Lázaro e alcançou a cura. Por gratidão, passou a organizar, anualmente, os festejos do santo, em sua residência. O rito consistia na organização de um banquete, tendo os cães como convidados principais. Depois das orações, os animais se serviam até a saciedade, com carnes e quitutes nobres. Os donos dos animais e outros participantes, serviam-se posteriormente. Eu, por muitas vezes, participei do evento, como amigo da anfitriã.

Durante os cortejos de reisado, Luzia chegou a integrar o evento cultural ao lado do filho Chico Preto, sem se importar, que a atividade folclórica, era em parte, realizada por homens. Nem o preconceito foi capaz de deixá-la inerte; sua resiliência e bom humor relevava tudo, até quando lhe chamavam de doida.

Por inúmeras vezes, resolveu empreender colocando bancas para vender café, chás, bolos e outras guloseimas. Não sei como ficava a contabilidade final, mas ninguém saia de sua banca sem um agrado, principalmente as crianças e os amigos. Para equilibrar o orçamento familiar, ela transportava água e cargas de Lenha para as residências, mediante encomenda. Também aceitava trabalhos como varrer os terreiros das residências e limpeza de quintais, muitas vezes auxiliada pelo filho caçula, Isaías.

Acometida por um câncer de mama, em tempos remotos, valeu-se do ciclo de amizades e prestígio social, para conseguir ser internada na Santa Casa de Misericórdia, em Fortaleza. O tratamento durou, aproximadamente, seis meses, tempo que lhe permitiu fazer amizade com o corpo clínico e demais profissionais, tornando-se, inclusive, amiga do provedor da instituição. Por essa razão, conseguiu trazê-lo a Dom Maurício. E o administrador, tornou-se hóspede frequente da Casa de Repouso São José.

Em função do longo período de internação, Luzia conquistara permissão especial, para visitar o Passeio Público6, em frente à Santa Casa. Ali, conheceu grupos ensaiando, marchas de carnaval. Ao retornar para casa, ensaiou as marchinhas, dentre elas o Twist. Logo, organizou um bloco, que desfilou pelas ruas do povoado. Depois da estreia, ela foi, novamente, tachada de louca e, por ironia, eu que era professor e diretor da escola do povoado, fui integrante do bloco e desfilei.

A sociedade depositou sobre seus ombros, uma quota desmedida de preconceito; o legado social para os remanescentes de quilombo7, era perverso por demais. E Luzia nascera em território do Quilombo Sítio Veiga8, então, oras sofria ofensas, por seu fenótipo, ora era tachada de louca. Mas, ela se mantinha firme e com bom humor; quando reagia, fazia com educação e sabedoria.

Se me fosse dado, hoje, opinar, quem foi Luzia, eu sintetizaria a essência do evangelho cristão e diria que, Luzia foi a obreira, que amou, semeando amor! E recorreria, ainda, aos versos da poetisa Cecília Meireles, para tentar explicar sua capacidade de resiliência, diante das provações e preconceitos por ela vividos: “ Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.

Luzia dos andores, santos e doutores, deixou a comunidade serrana emudecida; o criador chamou de volta o rouxinol que cantava, aos 74 anos de idade, em seu leito, no dia 07 de novembro de 2015. Seu corpo repousa no Cemitério Senhora Sant’Ana, em Dom Maurício; seu espirito foi promovido, hoje é faroleiro e se dedica ao labor celeste, porque a casa do pai foi preparada para os mansos e humildes de coração.


Nota de rodapé

¹ Nascer Laçada – Criança que durante o parto se apresenta laçada pelo cordão umbilical, dificultando o trabalho dos professais e requerendo deles maior agilidade e habilidade. Segundo a tradição do senso comum, aquele que nascer laçado, deverá ser batizado com o nome de Antônio, quando homem e Antônia quando se tratar de mulher. Dessa forma se evita que a criança morra de desgraça, afogada ou enforcada.

² MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização. Projeto do governo militar criado pela Lei n° 5.379/1967, visando alfabetizar de maneira funcional os jovens e adultos. Era uma deturpação do Método Pedagógico de Paulo Freire. Visava preparar a massa, para tirar o título de eleitor e votar.

³ Senhora Sant’Ana – Ana e Joaquim foram os pais de Maria, casada com José, o carpinteiro. Maria deu à luz a Jesus Cristo, portanto, Ana era a avó materna do filho de Deus. A fusão linguística da palavra santa com a palavra Ana, tornou-se Sant’Ana. Os mais antigos, por devoção e respeito, empregavam o pronome de tratamento Senhora. Portanto Senhora Sant’Ana. A divindade é padroeira do distrito de Dom Maurício, em Quixadá – Ceará, onde há um templo erguido.
4 Dança de São Gonçalo – Para salvar almas o santo buscava mulheres pecadoras para dançarem. Logo, ficavam cansadas e não pecavam; fazia o mesmo nos dias seguintes, até a conversão delas. O rito chegou ao Brasil e os negros incorporaram às suas tradições. A celebração foi trazida para o Sítio Veiga, pelos fundadores do quilombo.
5 Dançadeira – O mesmo que dançarina; a que dança bem. Os ancestrais chamavam dançadeira, por resistência e desconhecimento da norma culta da língua, a cultura local convencionou e passou a chamar de dançadeira.

6 Passeio Público – Praça dos Mártires, conhecida como Passeio Público. É a mais antiga praça da cidade de Fortaleza, Ceará, com vistas para o mar; foi edificada em frente ao Hospital Filantrópico Santa Casa de Misericórdia.

7 Remanescentes de quilombo – O que remanesce, restante. Grupo étnico-racial de ancestralidade negra que resistiram à opressão histórica, que sofreram, apresentando trajetória histórica e territorial específica.
8 Quilombo Sítio Veiga – Povoação da antiga Serra do Estêvão, atual distrito de Dom Maurício, em Quixadá – Ceará, por um grupo de negros, vindo do Estado do Rio Grande do Norte, chantando nas terras da povoação e cercanias, sua cultura e tradições. O Quilombo Sítio Veiga foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares, (órgão responsável pela emissão da certificação), em 20 de outubro de 2009. Em 2012, foi emitido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território Quilombola Sítio Veiga.

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Um comentário

  • Allana T Almeida ♥️

    Muito bom, a cada frase lida é um sentimento sentido, é amor em forma de palavras, é expressar algo já vivido em poemas e consegui passar para o leitor tão bem aquilo que foi vivido. São histórias, são memórias, são momentos. Muito amor e admiração pelo escritor Antônio Martins.