28 out, 2020 | Antonio Martins | Sem comentários

À Mestra com Carinho

Em plena sexta-feira, eu me preparava para tomar o caminho de casa; aproximava-se o final de semana. Enquanto eu desligava os equipamentos eletrônicos e finalizava a organização da mesa de trabalho, deparei-me com a agenda aberta, providencialmente, na página referente ao dia 16/07/2020 e nela eu escrevera: “ aniversário de dona Socorro Eugênio ”. Confesso que o registro, me fez refletir acerca da importância, que ela tivera em minha vida. E mergulhei no cerne de minhas memórias.

Maria do Socorro Eugênio nasceu no seio familiar, no Sítio Veiga, distrito de Dom Maurício, em Quixadá – Ceará, no dia 16 de julho de 1939. Filha de Raimundo Eugênio de Sousa e Maria Luzia de Sousa.

A menina, que atendia pelos cognomes de Socorro Eugênio e Socorro Bá, já despertou para a mundo, no labor agrícola. Ajudava a genitora nas demais atividades. E não se descuidava da formação cristã, ministrada no frouxel do ninho¹ ao lado dos irmãos. Por vezes, a família chegou a ser abordada por citadinos², em busca de negrinhas³ para trabalharem como domésticas, nas casas de família. Eram inúmeras as promessas e recompensas, mas, a tentação moderna, não destituiu a família.

Iniciou os estudos na residência da professora Raimunda Picuite, no Sítio Silvestre, com a Cartilha do ABC4 presenteada por seu pai. O aprimoramento da leitura, escrita e do cálculo, se deu em Dom Maurício, com as Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição, no Mosteiro da Santa Cruz e; posteriormente, como interna do Colégio Santa Isabel, em Fortaleza, por seis meses; voltou a estudar, novamente, nas dependências do Mosteiro da Santa Cruz, em Dom Maurício, quando estudou com minha mãe. Ali, aprenderam, também, cânticos, orações e fórmulas do Missal Romano, em latim.

Contraiu matrimônio com José Lourenço da Silva, passando a adotar, após o matrimônio, o nome de Maria do Socorro Eugênio da Silva, de cuja união, nasceram onze filhos.

Por seu fenótipo, a párvula negra de origem quilombola, com cabelo lanoso, preso ao couro cabeludo, de sorriso largo, com pais agricultores e analfabetos, que nasceram em solo quilombola, sofreu preconceitos escancarados e velados, que se perpetuaram. Certamente, a mestra teve por vezes, o punhal do preconceito e da intolerância social cravados em seu peito. E creio que ela deve ter reagido, sim, com a elegância de sempre. Mas as feridas da alma sagram para dentro e por não serem perceptíveis, torna-se difícil constatar quantas chagas atingiram sua alma. E ela, pela determinação, nunca desistiu dos sonhos e tão pouco da luta pacífica. Em verdade, ela aprendera no cerne familiar, o real sentido da resiliência, oferecendo sempre a outra face. Por esta e outras razões, um grande legado deixado por ela, é seu exemplo de vida.

Inicialmente, lecionou na sede do distrito de Dom Maurício; foi transferida para o Sítio Veiga, onde continuou exercendo a docência e, por sua formação cristã e liderança, tornou-se catequista; organizava terços, procissões e outros ritos cristãos; protagonizava com membros da comunidade encenação de dramas5; auxiliava os analfabetos, lendo e escrevendo cartas; participava da confraria organizadora da Dança de São Gonçalo6, atuando, inclusive, como dançadeira7.

Enquanto professora da Rede Municipal de Ensino de Quixadá – Ceará, ingressou no Projeto LOGOS I8, tendo concluído o 1.º Grau; ingressou no LOGOS II9 buscando concluir o 2.º Grau. E tudo isso se deu, ano após ano, em que ela permaneceu lecionando e estudando em Quixadá, quinzenalmente e durante os finais de semana, sendo esposa, mãe, Professora Coordenadora Rural, Líder Comunitária, Catequista e tantas outras atribuições. E ainda tinha políticos oportunistas, que almejavam explorar seu prestígio, mas ela transitava no meio com educação e decência.

Quando lecionou na sede do distrito de Dom Maurício, no Grupo Escolar Flávio Portela Marcílio, foi minha primeira professora de alfabetização. Ali, tinha início a relação entre mestra e discípulo. O universo forjara uma trama divina permitindo que a bifurcação de nossas vidas, se encontrasse no futuro próximo. Estávamos predestinados aos desígnios do criador.

O tempo passou, frequentei o Educandário São José, no povoado e, posteriormente, fui para a cidade, onde estudei em diversas instituições públicas; era preciso continuar. As oportunidades que eu tive, foram diferentes da via-crúcis da mestra. Afinal, os tempos e as políticas públicas, apesar de apequenada, elitista e excludente, eram outras; como também a cor de minha pele e a origem familiar também eram outras.

Tinha continuidade a saga gradativa de nossas vidas pessoal e profissional, quando retornei às origens como professor e, posteriormente, diretor da unidade escolar em que eu iniciara a alfabetização. Descortinava-se, ali, o enredo da trama do destino:

  • Socorro Eugênio lecionava na Escola de 1.º Grau José Pereira de Sousa, no Sítio Veiga;
  • Eu me tornara professor e diretor de seus filhos;
  • A mestra se tornara Professora Coordenadora Rural – PCR e eu seu subordinado;
  • Posteriormente, tornei-me PCR e, dessa feita, ela estava sob meu comando;
  • A professora foi transferida para a unidade sede, cujo administrador era eu, portanto, tornei-me seu diretor;
  • Matriculei-me no Programa Logos II, e ela se tornou minha colega de curso;
  • Fui Secretário Municipal de Educação de Quixadá, por duas gestões, tornando-me seu superior hierárquico.

É gratificante elencar os encontros e despedidas de nossas vidas como transeuntes da teia divina. E o crescimento mútuo não se deu apenas no plano profissional, projetou-se paralelamente à vida pessoal e se tornou aprendizagem. Oxalá, projeção de luz para o porvir.

Jesus Cristo quando curou os dez leprosos, mandou que eles fossem até os sacerdotes mostrar, que estavam curados. Ocorre, que um deles voltou para agradecer. O Mestre, então, indagou, onde estavam os outros nove, que não voltaram com ele? A lição ensina que flores devem ser ofertadas em vida. E hoje é o aniversário de nascimento de dona Socorro Eugênio, e eu resolvi homenageá-la. Sei que não tenho o melhor presente do mundo para ofertá-la. Mas tenho a gratidão, pelo discípulo que me tornei. O escopo do conhecimento empunhado em minhas mãos, conduziu-me para a oficina do aprimoramento humano, acadêmico e profissional. E estou, neste momento, utilizando, em parte, o que aprendi com ela e com os demais mestres, para laureá-la com este singelo preito de gratidão.

Atualmente, a mestra cumpriu seu mister com louvor e se encontra aposentada, vivendo no Quilombo do Sítio Veiga10, em Dom Maurício, no seio familiar. E circula livre pelo torrão natal, onde tudo começara. Eu, na condição de aprendiz, abracei, também, a cátedra do magistério. E me torna pleno, saber que a criança pequenina, ocupante da carteira escolar, sem que os pés tocassem o solo, no Grupo Escolar Rural Flávio Portela Marcílio11, em Dom Maurício, projetou-se nos ensinamentos dos professores. E que as lições aprendidas ao longo da caminhada, tornaram-se ferramentas, com as quais eu ganho a vida.


Nota de rodapé

¹ Frouxel do ninho – Aconchego do lar.
² Citadinos – Pessoas que moram na cidade.
³ Negrinhas – Diminutivo de Meninas negras. Termo pejorativo para meninas negras que exerciam atividade domésticas.
4 Cartilha do ABC – A Cartilha ou Carta do ABC é uma brochura didática, destinada à alfabetização. A ausência de políticas públicas educacionais equitativas, fazia com que os pais comprassem a cartilha, na qual os filhos estudavam, sob a orientação de alguém letrado. A obra foi a precursora das demais cartilhas. Até o final da década de 1930, foi a obra com maior tiragem; Atualmente está sendo reeditada na atualidade, juntamente com a tabuada.

5 Dramas – Apresentações de peças teatrais em que o enredo é voltado para os acontecimentos da vida real. Uma mistura do trágico com o cômico em cenas comoventes. Quando não havia energia elétrica, televisão, redes sociais e outras formas de entretenimento, as famílias se juntavam nos terreiros e calçadas para conversarem sobre a luz da lua. As crianças brincavam nos terreiros, enquanto que os jovens e senhoras, criavam e ensaiavam os dramas, montavam as vestes e os cenários e apresentavam os dramas. A grande maioria dos textos dos dramas, tinha apresentação cantada.
6 Dança de são Gonçalo – O santo queria salvar almas, então, resolveu buscar as mulheres pecadoras para dançarem aos sábados, logo, durante as noites estavam cansadas e não pecavam; fazia o mesmo no dia seguinte até a conversão delas. O rito chegou ao Brasil e os negros incorporaram às suas tradições. A celebração em forma de dança diurna, conforme a tradição, foi trazida para o Sítio Veiga, pelos fundadores do quilombo. Constitui-se de doze jornadas para o santo, uma para as dançadeiras e tantas mais, conforme os promesseiros. (Entendendo-se por promesseiros os que fazem promessas).
7 Dançadeira – O mesmo que dançarina; a que dança bem. Os ancestrais chamavam dançadeira, então, por resistência e desconhecimento da norma culta da língua, a cultura local convencionou e passou a chamar de dançadeira

8 LOGOS I – Projeto de Formação para Professores Leigos, via Supletivo, com escolaridade até a 4ª série do primeiro Grau, em pleno exercício de suas atividades profissionais, cuja certificação conferia a conclusão da 8ª série do 1.º Grau. O Projeto era um desdobramento do Logos II e se dava no âmbito de cada Secretaria Municipal de Educação.
9 LOGOS II – Na década de 1970, alguns estados brasileiros implantaram o Projeto Logos II, com o objetivo de formar, em regime emergencial, professores que eram leigos. O Projeto, que se estendeu até o final da década de 1990, visava formar professores com escolaridade precária, via Supletivo, conferindo-lhes o diploma de 2º Grau, com habilitação para o magistério de 1º Grau.

10 Quilombo do Sítio Veiga – Povoação criada na antiga Serra do Estêvão, atual distrito de Dom Maurício, em Quixadá – Ceará, por um grupo de negros, vindo do Estado do Rio Grande do Norte, chantando nas terras da povoação e cercanias, sua cultura e tradições. O Quilombo foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares, (órgão responsável pela emissão da certificação), em 20 de outubro de 2009. Em 2012 o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA emitiu o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território Quilombola Sítio Veiga.
11 Grupo Escolar Rural Flávio Portela Marcílio – O Grupo Escolar Flávio Portela Marcílio foi construído e inaugurado pelo Prefeito José Linhares da páscoa em 1969; por estar situado na zona rural, foi denominado de Grupo Escolar Rural Flávio Portela Marcílio; com o advento da Lei Federal 5692/71 recebeu a denominação de Escola de 1º Grau Flávio Portela Marcílio e; por força da Lei Federal nº 9394/96 e Lei Municipal nº 2627/2013, passou atualmente a se chamar Escola de Ensino Fundamental Antônio Martins de Almeida.

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